Vida

Metade rua, metade arte

Cid Branco, ex-morador de rua, foi salvo pelo teatro e conquistou o sonho de entrar para a universidade; hoje é diretor, ator, oficineiro e palhaço

Gabriel Huth -

O ano é 1969. Nascia em Pelotas o pequeno Cid. A trajetória que seguiu deste nascimento assemelha-se com uma peça de teatro. O contexto, ditadura militar. A tragédia, o abandono do pai e as consequências desse fato. A mulher guerreira que trabalha dia e noite para criar o filho único. E a criança que, consciente de sua situação, decide ajudar a mãe para sustentar a casa e a fome.

Com oito anos de idade o menino Cid já se desdobrava em tarefas. Para garantir o pão no fim do dia, lavava carros, engraxava sapatos e entregava jornais. Vivia perambulando pelo centro da cidade, fazendo bicos para qualquer um que aceitasse seu serviço, morando no meio-fio e correndo de quadra em quadra com outros meninos de rua. Bastou um episódio, um acontecimento fora da curva, para destinar anos de invisibilidade.

"Eu entrei numa padaria e pedi uma recheada. O dono da padaria pegou um pedaço de pau, me bateu e disse que não ia vender pra guri de rua. Machuquei as costelas, quebrei o nariz. Duas quadras depois tinha uma ferragem. Eu sabia, por causa dos outros meninos da rua, que a cola de sapato tirava o frio e a fome". E foi esse saber, que não é o saber comum das crianças que frequentam a escola e possuem uma estrutura familiar, que levou Cid Branco para as drogas. "'Tio, me vende uma lata de Cascola?' (cola de sapato, droga da época). O tio da padaria não quis vender o pão, bateu", mas a droga estava disponível. Era criança e já se debruçava sobre o vício. Fugia de casa, do colégio, vivia na rua.

"A rua te castiga. A rua pune. Apanhei muito da vida", conta Cid, enquanto caminhava com a reportagem pelo centro da cidade. A mãe era espírita e tinha esperança no retorno do filho a uma vida saudável. Com dez anos levou Cid para conhecer André Macedo, ex-cartunista do Diário Popular, com o objetivo de participar de aulas de teatro. "Quando eu ia para o teatro, eles falavam 'que bom que tu veio'. Eu pensava: opa, na rua eu apanho. Aqui me querem. E o teatro nada mais era do que brincar de ser outra pessoa", relata. Era o Grupo de Arte e Expressão Espírita (Gaee), que ensaiava na Sociedade União e Instrução Espírita, o União, em Pelotas. As pessoas acreditavam que Cid tinha talento e essa confiança o fez permanecer por lá. Nunca mais abandonou a arte. Foi ela quem o salvou e é ela seu sustento até hoje.

No entanto, o sofrimento da família continuava. A dificuldade financeira, o padrasto que agredia a mãe: na cabeça de Cid, todos esses problemas eram causados por ele. "A minha ideia era cheirar cola até morrer, porque aliviava", diz. Com 11 anos foi encontrado na rua pela Brigada Militar e levado ao Instituto de Menores. "Foi tortura. Fiquei dois anos de instituição em instituição. Fui considerado delinquente infantil."

Uma nova trajetória
Com 16 anos, livre das instituições e solto pela cidade novamente, tornou-se andarilho: botou o pé na estrada e morou na rua por conta própria. Tudo que queria era voltar para o teatro, desabafa, enquanto se dirigia ao Theatro Sete de Abril, em frente à praça Coronel Pedro Osório; local escolhido por Cid para conversar com a reportagem, palco onde já se apresentou e de onde sente grande saudade. "Eu penso nele como um senhor de barbas brancas que passa por nós pedindo ajuda", diz, referindo-se ao prédio, interrompido para restauração há sete anos.

Andando de carona pelo país, fez oficinas e cursos em São Paulo, Rio de Janeiro e até na Argentina. No currículo, cita cursos com os diretores brasileiros Antunes Filho e Celso Martinez e no Teatro do Tablado com Maria Clara Machado, escritora e dramaturga. Foi de cidade em cidade que criou o Tropesso, um palhaço com trejeitos de Chaplin, movido pelo deboche da tragédia social e personagem que carrega até hoje.

Rumo ao Ensino Superior
Já em Rio Grande, montou um grupo dentro de uma escola particular por uma permuta - enquanto dava oficinas para crianças do colégio, recebia aulas do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) como pagamento. A educação formal aos poucos virou um sonho que, em 2015, Cid realizou. Prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para cursar Teatro na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e foi aprovado. Hoje, tem um número de matrícula que o identifica e uma cadeira na sala de aula que o espera. Para Cid, ser aluno de uma universidade federal não foi só a realização de um sonho, mas um acontecimento que marcou o seu pertencimento na sociedade e a ascensão na vida. De morador de rua para universitário. A faculdade, atualmente, está trancada. Parou para continuar trabalhando e se sustentar, mas pretende voltar em 2018.

Aos 48 anos, Cid Branco mora em Rio Grande. Trabalha com teatro para pessoas com deficiências, com coletivos de teatro e com a Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental de Pelotas (Aussmpe), além de ministrar oficinas em cidades da região e fora do Estado. "Eu entendi uma coisa que eu não sabia, que é a responsabilidade com as pessoas que me veem. Eu não sou mais o Cid morador de rua, o Cid invisível. Eu sou o Cid que tem pensamento crítico e uma plateia. E é um público que me paga. Se eu consigo comer, é porque tem alguém que paga pra me ver."

Nunca abandonou a rua. Desta vez, está nela para ressignificar; para transformar e colorir o concreto com a arte. E como alguém que muito conhece a madrugada fria do centro da cidade, o perambular de calçada em calçada, não pôde desvencilhar a rua de si: carrega nas mãos a pele calejada e na alma a missão do teatro de rua, popular. "Eu descobri que a minha função é ajudar a transformar esse mundo através da minha arte. Não sou referência pra nada e não quero ser. Mas eu quero que as pessoas entendam que elas podem melhorar. Basta querer."

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